5.10.08

Algumas palavras sobre o olhar[1]

Embora nós, animais racionais, não tenhamos uma visão tão desenvolvida quanto a de outros animais, somos os únicos a usá-la de forma que nos auxilie na conquista do sexo oposto. Diria que o olhar é a primeira investida nesse sentido (o da conquista), através dele deixamos transparecer e percebemos os flertes, primeiros mensageiros da conquista. Neste sentido somos o Cupido (conhecido também como Eros, o deus do amor na mitologia grega) que lança suas flechas (o olhar) fazendo com que suas vítimas caiam numa profunda paixão.


Desde a antiguidade grega, o olhar tem um laço imaginário com a sexualidade onde "o olho é um meio de possuir — ou de ser possuído — completamente análogo aos órgãos sexuais, que possuem e são possuídos". Entendendo-se, dessa forma, que o olhar, enquanto meio primeiro da conquista, é o que levará a sua consolidação através do ato sexual.


Bebendo ainda nas fontes mitológicas, encontramos também a lenda de Narciso. Filho do deus Céfiso e da ninfa Liríope, que segundo a advertência do adivinho Tirésias, "viveria melhor se não se olhasse. Belíssimo, chegando a idade adulta, Narciso tornou-se objeto da paixão de um grande número de moças e de ninfas, mas sempre se mostra insensível ao amor. Os pedidos de vingança das mulheres atraem para ele as iras de Nêmesis. Um dia, Narciso se inclina numa fonte para matar a sede. Percebe então seu rosto e dele se enamora. Daí em diante, absolutamente indiferente ao mundo, debruça-se sobre a sua própria imagem e se deixa morrer".


Contada e cantada através dos tempos, todos nós conhecemos a estória de Narciso que tendo dispensado o amor da ninfa Eco, faz com que essa procure a deusa da vingança (Nêmesis) pedindo-a que Narciso soubesse algum dia o que é o amor e não ser correspondido. O resto da estória já sabemos. O que poucos sabem, porém, são as palavras ditas por ele ao se ver no lago:


— Fica, peço-te! Deixa-me, pelo menos, OLHAR-TE, já que não posso tocar-te.


Aqui, o olhar aparece como única opção de alguém diante de um amor impossível; como o único sentido capaz de amenizar a falta que os outros fazem, ou seja, ouvir, sentir, cheirar e degustar a pessoa amada. Narciso via apenas, através do olhar, a sua imagem refletida na fonte e como o olhar era a sua condição primeira e última para conquista de si mesmo, o jovem Narciso morre aos poucos às margens da fonte. A lenda ainda conta que após morrer, a sua sombra ao atravessar o rio Estige, debruça-se sobre o barco para numa última tentativa avistar-se na água. Até mesmo após sua morte, Narciso tenta se OLHAR nas águas do rio, numa forma de guardar na lembrança a sua imagem.


Trazendo essa discussão sobre o olhar para uma época mais contemporânea, temos a célebre frase que diz: "os opostos se atraem". Não creio eu que essa afirmação seja aplicável, pelo menos no campo das relações entre as pessoas. Talvez seja infalível na química estudada pelos cientistas. Mas quem são os cientistas para aplicá-la nas relações e no amor, tendo em vista que esse último não é uma ciência exata como a matemática?


Avançando um pouco mais no tempo, "os neoplatônicos dos séculos XIV e XVI chegaram mesmo a definir o verdadeiro amor como pura contemplação, de tal maneira que o que se vê se torne idêntico àquele que é visto. O amor é visão dividida. Os olhares se confundem com os corações e mais perfeitamente com que os sexos". Vemos então a importância do olhar, do ver como ponto de partida para a relação. E quando olhamos, procuramos o que primeiro nos mostra a beleza, depois nos procuramos na outra pessoa. É a procura pelas mesmas características, pelo comum. Nessa hora somos Narciso e a outra pessoa o lago e procuramos nos enxergar nesse lago e às vezes morremos nele.


"Efetivamente, o homem só pode amar a si mesmo ou seu semelhante (com o qual possa se identificar) ou então um se transcendente capaz de essencializar a sua humanidade (...) O homem ama a mulher na medida em que ele é essa mulher, e vice-versa. É uma relação em espelho: cada um dos parceiros extrai do outro a si mesmo, ou melhor, a imagem de si mesmo". E antes do amar, de se identificar, e da beleza, vem o olhar. Essa poderosa mágica que nos permite conquistar o mundo através dela. E para terminar esse texto, contarei em algumas linhas a estória de Eros e Psique.


Psique, filha de rei, tinha duas irmãs. A formosura das duas mais velhas era fora do comum, mas a beleza da mais moça era tão maravilhosa que não existem palavras para expressa-lá como merece. A fama de tal beleza era tão grande que estrangeiros de países vizinhos iam, em multidões, admirá-la rendendo a própria jovem homenagens que só se devem a própria Vênus (conhecida também como Afrodite, deusa do amor e da beleza. Nascida da espuma do mar e casada com Vulcano). Vaidosa e vingativa, ao ver os seus altares desertos, a deusa Vênus providenciou para que Psique tivesse motivos para se arrepender de sua beleza. Então, chama o seu filho Eros e lhe diz:


— Castiga, meu filho, aquela audaciosa beleza; assegura a tua mãe uma vingança tão doce quanto foram amargas as injúrias recebidas. Infunde no peito daquela altiva donzela uma paixão por um ser baixo, indigno, de sorte que ela possa colher uma mortificação tão grande quanto o júbilo e o triunfo de agora.


Cupido preparou-se para obedecer às ordens maternas. Pegou suas flechas, umas de água doce e outras de água amarga, e dirigiu-se para o quarto de Psique, que a encontrou dormindo. Derramou, então, algumas gotas de água da fonte amarga sobre os lábios da jovem. Ela acorda e abre os olhos diante de Cupido (ele próprio invisível), que perturbado, feriu-se com sua própria seta. Pensou de imediato em desfazer o mal que fizera e derramou as gotas de alegria sobre os sedosos cabelos da jovem.


Diante de tanta beleza, ninguém ousara casar com Psique. Seu pai ficou desesperado e seguindo porem a indicação do oráculo — que afirmara que sua filha estava destinada a se casar com um monstro — conduziu a filha ao alto de um rochedo, onde a deixou. A moça foi arrebatada pelo vento, adormeceu, acordando no jardim de um palácio magnífico. Foi acolhida por vozes que a guiaram e se puseram a seu serviço. À noite, apareceu-lhe um marido que, sem lhe revelar o nome, advertiu-a de que jamais deveria olhar para ele. Ela viveu feliz desta forma até que um dia pediu ao marido que a deixasse olhá-lo, no que ele disse: – Por que queres me ver? Duvidas do meu amor? Tens algum desejo que não foi satisfeito? Se me visses, talvez fosse temer-me, talvez me adorar, mas a única coisa que peço é que me ames. Prefiro que me ames como igual a que me adores como Deus.


Psique se aquietou por um tempo até que um dia suas irmãs a visitou e lhe despertou o desejo de vê-lo. À noite, Psique tomada por curiosidade, olhou para o rosto do marido enquanto esse dormia e descobriu um belíssimo rapaz (tratava-se de Eros, o deus do amor). Assustado, Cupido abre os olhos e encara Psique e em seguida abre as asas e sai voando e dizendo: – Tola Psique, é assim que retribui meu amor? Depois de ter desobedecido às ordens de minha mãe e ter te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro. Volta para junto de tuas irmãs, o amor não pode conviver com a desconfiança.


Psique passa por mil tormentos, perseguida por Afrodite, mãe de Cupido, na tentativa de se reconciliar a ele. Cupido, então, apresenta-se diante de Zeus e o suplica que a ajude. Zeus advoga com tanto empenho a causa dos amantes que consegue a concordância de Afrodite. Assim Psique ficou finalmente unida a Cupido e, mais tarde, tiveram uma filha, cujo nome foi prazer.


Voltando ao tema inicial (o olhar) podemos concluir que "Eros não queria ser olhado, mas olhava. Psique conquistou, a duras penas, a possibilidade de ver a reciprocidade no olhar".


Ps.: “Psique em grego significa tanto borboleta como alma. Não há alegoria mais notável e bela da imortalidade da alma como a borboleta que depois de estender as asas, do túmulo em que se achava, depois de uma vida mesquinha e rastejante como lagarta, flutua na brisa de um dia e torna-se um dos mais belos e delicados aspectos da primavera. Psique é portanto a alma humana, purificada pelos sofrimentos e infortúnios, e preparada, assim, para gozar a pura e verdadeira felicidade”.



Bibliografia (Alguns livros que ajudaram no desenvolvimento do texto):

• Do Mito a Psicanálise. In: SODRÉ, Muniz. Televisão e Psicanálise. São Paulo, Ática, 1987. P: 13-15.

• BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia Grega - Histórias de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001. P: 99-109.


[1] Esse texto foi escrito no dia 19 de junho de 2002, portanto seis anos atrás. Achei-o ao revirar alguns arquivos esquecidos em um CD-ROM gravado na mesma época. Observando-o hoje, me parece um tanto ingênuo. Nunca foi publicado ou divulgado em nenhum meio. Assim, torno-o pública através deste blog.