29.10.08

O lixo dos condomínios: racionalização desagradável


Peguei meu saco de lixo. Desci os dois andares do prédio em que moro e me dirigi ao local destinado ao depósito de tal material. Na medida em que me aproximava, percebi que para aquele lixo havia diversos destinos possíveis.

Trazia em uma das mãos aquilo que se convencionou chamar de lixo orgânico (resíduos de comida, frutas e coisas que a natureza, com sua sapiência silenciosa, absorve por si mesmo); na outra, lixo reciclável (plástico, vidro, papelão, metais e todos aqueles objetos que são produtos da criação humana). Na minha cabeça eu tinha dois destinos para cada um desses sacos que trazia: um deles iria para o lixo que seria recolhido pelo carro da prefeitura e o outro seria colocado separado do primeiro para ser recolhido e reciclado.

Pois bem, temos aí um pequeno exemplo de racionalização e da forma como a sociedade atual destina os seus resíduos. Mas eu não sabia que esta racionalização envolve um tipo de relação social bem específica. Então percebi, ainda há caminho do local em que jogaria o meu lixo, que além dessas “duas espécies” de lixo havia outras.

Além do lixo reciclável e do lixo orgânico havia também o lixo que servia como subsistência de um grande número de miseráveis. Estes, logo cedo, antes mesmo de nos acordarmos, recolhiam aquilo que poderia servir para ser vendido ou até mesmo consumido. Aquilo que, para nós, já não teria nenhuma serventia. Aquilo que eu estava indo jogar no lixo naquele momento.

Percebi então que a coisa é bem mais profunda e complicada do que eu poderia imaginar. É claro que sabia da existência dessas pessoas, de gente que vive disso. Só não imaginava ou não tinha pensado sobre a existência de uma lógica racional que operava na relação que as pessoas tinham com seu lixo e com as outras pessoas. Isso pelo fato de perceber que além do lixo orgânico e do lixo reciclável, há também “outras espécies de lixo”: como aquele que já não serve mais para alguém, mas que pode servir para outros. Exemplo: um móvel, roupas velhas, brinquedos etc.
No caminho percorrido para jogar meu lixo, percebi essas outras “espécies” de lixo, coisas que as pessoas do condomínio onde moro iam deixando, cada um em seu local específico, para que terceiros dessem o fim que quisessem.

Foi assim que vi funcionando certo tipo de acordo “provisório” entre duas partes que se “privilegiavam” com esta situação. Mais que isso: esse “acordo” tem suas regras, tem seus pode e seus não pode. Desta forma, um dos lados facilita deixando os portões de trás do condomínio abertos, em determinados horários, para que algumas pessoas possam pegar aquilo que elas acham que têm algum proveito para si. Por sua vez, os catadores de lixo fazem uma “limpeza parcial” do lixo “dos bacanas”.
Poderíamos até mesmo brincar agora e dizer que há um lixo para tudo que é gosto. Mas, com certeza, se fosse dada as condições materiais para estas pessoas, elas não estariam ali catando lixo para sobreviverem.

Ao chegar ao local destinado para se colocar os resíduos do condomínio, foi com o pesar mais profundo que depositei o meu lixo orgânico em um local e o meu lixo reciclável em outro. E assim seguimos alimentando esse sistema.

20.10.08

EUtnografias #2

Tédio

Enquanto Caetano canta “samba e amor” do Chico, vou escrevendo estas linhas como quem procura inspiração na audição da música de poesia refinada estilo Noel Rosa. A falta de assunto que se ancora e parece não querer sair, termina virando assunto também por aqui.

Neste domingo monótono, passo longe da televisão para não cair na tentação de pegar o controle e ver a programação. Nessas horas fico pensando aonde vamos chegar com esses programas; a criatividade não chegou ao seu limite, espero. Ler um livro pode ser um bom programa, mas o barulho da televisão nos alcança aonde quer que nós nos escondamos. E qualquer barulho nos é prejudicial.

E enquanto vou escrevendo, ouço a vizinha chegando no apartamento ao lado. A voz de robô, inconfundível, a denuncia até mesmo há quilômetros de distância. Sei que é ela, primeiro, pela voz, segundo, por que sempre chega falando com seu gato siamês, como se o gato fosse seu filho. Mas o mais interessante é que a filha dela chama o gato de irmão. Aí eu não sei mais aonde é que estamos. Às vezes acho que o estranho sou eu, que as pessoas evoluíram e eu fiquei para atrás. Chego a pensar que isso tem alguma ligação com o fato de eu não assistir ou assistir pouco a TV. E as coisas vão dando um nó na minha cabeça.

Caetano segue cantando. Daqui a pouco retomo Balzac, aquela leitura que parece não ter fim. Uma pausa para o café e um fuminho bom.

O barulho vem do apartamento ao lado: a mãe discute com a filha (ou será o contrário?). Por mais que não me interesse, é impossível não ouvir a discussão, pois é costume da vizinha deixar a porta do apartamento aberta só com a grade. Agora é que não dá pra ler mais nada! E o gato, “filho” da vizinha e “irmão” da filha dela assiste a tudo sem nada entender com o olhar curioso dos gatos.

Agora que já consegui uma quantidade de parágrafos razoáveis para postar neste blog, me lembro que é melhor parar por aqui.

Domingo. Algum dia de outubro de dois mil e oito. Que poderia ser um, vinte e dois, trinta...

17.10.08

EUtnografias

- Vou escrever logo isso antes que me esqueça!

Falei pra mim mesmo me dirigindo rapidamente para o teclado do computador esquecendo sobre a mesa a xícara de café mal tomada. Rolava um sonzinho de fundo, coisa nova que uma amiga tinha me passado.

Certas músicas têm um poder especial. Semana passada um colega me falava que às vezes passava semanas ouvindo certo álbum. Isso também acontece comigo. E ouvi tanto certo cantor que já tem mais de uma semana que um trecho da música não sai da minha cabeça, fica repetindo, repetindo...

Mas não é bem sobre isso que eu queria falar. Eu dizia que certas músicas têm um poder especial. Algumas delas conseguem nos transportar para um tempo, um lugar. É como se voltássemos a viver aquele contexto em que estávamos ouvindo a música. É um tanto nostálgico, eu sei. Talvez por isso que eu não goste tanto. Às vezes sinto que a música ficou datada, embora seja uma ótima canção e que mereça ser revisitada.

Certos odores, cheiros também têm esse poder. Certa vez senti um cheiro que me lembrou algo da infância. E como explicar isso? Simplesmente sabia que aquele cheiro não era algo novo, que fazia parte do meu passado. E quando o senti novamente, me vieram as mais diversas lembranças.

Talvez esse sonzinho que está rolando de fundo agora enquanto escrevo, amanhã não me agrade tanto. Talvez, num futuro próximo, quem sabe, ele me lembre este texto. Me lembre este blog. E assim vou somando, somando, somando... E minha passagem por este mundo vai se transformando numa acumulação auditiva, uma acumulação de odores e outros sentidos.

5.10.08

Algumas palavras sobre o olhar[1]

Embora nós, animais racionais, não tenhamos uma visão tão desenvolvida quanto a de outros animais, somos os únicos a usá-la de forma que nos auxilie na conquista do sexo oposto. Diria que o olhar é a primeira investida nesse sentido (o da conquista), através dele deixamos transparecer e percebemos os flertes, primeiros mensageiros da conquista. Neste sentido somos o Cupido (conhecido também como Eros, o deus do amor na mitologia grega) que lança suas flechas (o olhar) fazendo com que suas vítimas caiam numa profunda paixão.


Desde a antiguidade grega, o olhar tem um laço imaginário com a sexualidade onde "o olho é um meio de possuir — ou de ser possuído — completamente análogo aos órgãos sexuais, que possuem e são possuídos". Entendendo-se, dessa forma, que o olhar, enquanto meio primeiro da conquista, é o que levará a sua consolidação através do ato sexual.


Bebendo ainda nas fontes mitológicas, encontramos também a lenda de Narciso. Filho do deus Céfiso e da ninfa Liríope, que segundo a advertência do adivinho Tirésias, "viveria melhor se não se olhasse. Belíssimo, chegando a idade adulta, Narciso tornou-se objeto da paixão de um grande número de moças e de ninfas, mas sempre se mostra insensível ao amor. Os pedidos de vingança das mulheres atraem para ele as iras de Nêmesis. Um dia, Narciso se inclina numa fonte para matar a sede. Percebe então seu rosto e dele se enamora. Daí em diante, absolutamente indiferente ao mundo, debruça-se sobre a sua própria imagem e se deixa morrer".


Contada e cantada através dos tempos, todos nós conhecemos a estória de Narciso que tendo dispensado o amor da ninfa Eco, faz com que essa procure a deusa da vingança (Nêmesis) pedindo-a que Narciso soubesse algum dia o que é o amor e não ser correspondido. O resto da estória já sabemos. O que poucos sabem, porém, são as palavras ditas por ele ao se ver no lago:


— Fica, peço-te! Deixa-me, pelo menos, OLHAR-TE, já que não posso tocar-te.


Aqui, o olhar aparece como única opção de alguém diante de um amor impossível; como o único sentido capaz de amenizar a falta que os outros fazem, ou seja, ouvir, sentir, cheirar e degustar a pessoa amada. Narciso via apenas, através do olhar, a sua imagem refletida na fonte e como o olhar era a sua condição primeira e última para conquista de si mesmo, o jovem Narciso morre aos poucos às margens da fonte. A lenda ainda conta que após morrer, a sua sombra ao atravessar o rio Estige, debruça-se sobre o barco para numa última tentativa avistar-se na água. Até mesmo após sua morte, Narciso tenta se OLHAR nas águas do rio, numa forma de guardar na lembrança a sua imagem.


Trazendo essa discussão sobre o olhar para uma época mais contemporânea, temos a célebre frase que diz: "os opostos se atraem". Não creio eu que essa afirmação seja aplicável, pelo menos no campo das relações entre as pessoas. Talvez seja infalível na química estudada pelos cientistas. Mas quem são os cientistas para aplicá-la nas relações e no amor, tendo em vista que esse último não é uma ciência exata como a matemática?


Avançando um pouco mais no tempo, "os neoplatônicos dos séculos XIV e XVI chegaram mesmo a definir o verdadeiro amor como pura contemplação, de tal maneira que o que se vê se torne idêntico àquele que é visto. O amor é visão dividida. Os olhares se confundem com os corações e mais perfeitamente com que os sexos". Vemos então a importância do olhar, do ver como ponto de partida para a relação. E quando olhamos, procuramos o que primeiro nos mostra a beleza, depois nos procuramos na outra pessoa. É a procura pelas mesmas características, pelo comum. Nessa hora somos Narciso e a outra pessoa o lago e procuramos nos enxergar nesse lago e às vezes morremos nele.


"Efetivamente, o homem só pode amar a si mesmo ou seu semelhante (com o qual possa se identificar) ou então um se transcendente capaz de essencializar a sua humanidade (...) O homem ama a mulher na medida em que ele é essa mulher, e vice-versa. É uma relação em espelho: cada um dos parceiros extrai do outro a si mesmo, ou melhor, a imagem de si mesmo". E antes do amar, de se identificar, e da beleza, vem o olhar. Essa poderosa mágica que nos permite conquistar o mundo através dela. E para terminar esse texto, contarei em algumas linhas a estória de Eros e Psique.


Psique, filha de rei, tinha duas irmãs. A formosura das duas mais velhas era fora do comum, mas a beleza da mais moça era tão maravilhosa que não existem palavras para expressa-lá como merece. A fama de tal beleza era tão grande que estrangeiros de países vizinhos iam, em multidões, admirá-la rendendo a própria jovem homenagens que só se devem a própria Vênus (conhecida também como Afrodite, deusa do amor e da beleza. Nascida da espuma do mar e casada com Vulcano). Vaidosa e vingativa, ao ver os seus altares desertos, a deusa Vênus providenciou para que Psique tivesse motivos para se arrepender de sua beleza. Então, chama o seu filho Eros e lhe diz:


— Castiga, meu filho, aquela audaciosa beleza; assegura a tua mãe uma vingança tão doce quanto foram amargas as injúrias recebidas. Infunde no peito daquela altiva donzela uma paixão por um ser baixo, indigno, de sorte que ela possa colher uma mortificação tão grande quanto o júbilo e o triunfo de agora.


Cupido preparou-se para obedecer às ordens maternas. Pegou suas flechas, umas de água doce e outras de água amarga, e dirigiu-se para o quarto de Psique, que a encontrou dormindo. Derramou, então, algumas gotas de água da fonte amarga sobre os lábios da jovem. Ela acorda e abre os olhos diante de Cupido (ele próprio invisível), que perturbado, feriu-se com sua própria seta. Pensou de imediato em desfazer o mal que fizera e derramou as gotas de alegria sobre os sedosos cabelos da jovem.


Diante de tanta beleza, ninguém ousara casar com Psique. Seu pai ficou desesperado e seguindo porem a indicação do oráculo — que afirmara que sua filha estava destinada a se casar com um monstro — conduziu a filha ao alto de um rochedo, onde a deixou. A moça foi arrebatada pelo vento, adormeceu, acordando no jardim de um palácio magnífico. Foi acolhida por vozes que a guiaram e se puseram a seu serviço. À noite, apareceu-lhe um marido que, sem lhe revelar o nome, advertiu-a de que jamais deveria olhar para ele. Ela viveu feliz desta forma até que um dia pediu ao marido que a deixasse olhá-lo, no que ele disse: – Por que queres me ver? Duvidas do meu amor? Tens algum desejo que não foi satisfeito? Se me visses, talvez fosse temer-me, talvez me adorar, mas a única coisa que peço é que me ames. Prefiro que me ames como igual a que me adores como Deus.


Psique se aquietou por um tempo até que um dia suas irmãs a visitou e lhe despertou o desejo de vê-lo. À noite, Psique tomada por curiosidade, olhou para o rosto do marido enquanto esse dormia e descobriu um belíssimo rapaz (tratava-se de Eros, o deus do amor). Assustado, Cupido abre os olhos e encara Psique e em seguida abre as asas e sai voando e dizendo: – Tola Psique, é assim que retribui meu amor? Depois de ter desobedecido às ordens de minha mãe e ter te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro. Volta para junto de tuas irmãs, o amor não pode conviver com a desconfiança.


Psique passa por mil tormentos, perseguida por Afrodite, mãe de Cupido, na tentativa de se reconciliar a ele. Cupido, então, apresenta-se diante de Zeus e o suplica que a ajude. Zeus advoga com tanto empenho a causa dos amantes que consegue a concordância de Afrodite. Assim Psique ficou finalmente unida a Cupido e, mais tarde, tiveram uma filha, cujo nome foi prazer.


Voltando ao tema inicial (o olhar) podemos concluir que "Eros não queria ser olhado, mas olhava. Psique conquistou, a duras penas, a possibilidade de ver a reciprocidade no olhar".


Ps.: “Psique em grego significa tanto borboleta como alma. Não há alegoria mais notável e bela da imortalidade da alma como a borboleta que depois de estender as asas, do túmulo em que se achava, depois de uma vida mesquinha e rastejante como lagarta, flutua na brisa de um dia e torna-se um dos mais belos e delicados aspectos da primavera. Psique é portanto a alma humana, purificada pelos sofrimentos e infortúnios, e preparada, assim, para gozar a pura e verdadeira felicidade”.



Bibliografia (Alguns livros que ajudaram no desenvolvimento do texto):

• Do Mito a Psicanálise. In: SODRÉ, Muniz. Televisão e Psicanálise. São Paulo, Ática, 1987. P: 13-15.

• BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia Grega - Histórias de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001. P: 99-109.


[1] Esse texto foi escrito no dia 19 de junho de 2002, portanto seis anos atrás. Achei-o ao revirar alguns arquivos esquecidos em um CD-ROM gravado na mesma época. Observando-o hoje, me parece um tanto ingênuo. Nunca foi publicado ou divulgado em nenhum meio. Assim, torno-o pública através deste blog.

26.9.08

Confissões de um usuário



Finalmente cheguei em casa! Estava morto, estressado e cheio de problemas. Não sei por que as coisas têm que ser assim... Todo mundo tem problemas, mas nunca pensei que iria ficar tão mal. Ainda bem que não tem ninguém em casa, isso só piora tudo. Prefiro estar aqui sozinho ouvindo o silencio, ouvindo o barulho do meu juízo queimando minhas idéias do que ta ouvindo o povo passando de um canto pra outro invadindo minha privacidade, ligando a televisão pra assistir a desgraça nossa de cada dia. Definitivamente não!

Então relaxei. Tirei a roupa e fiquei apenas de cuecas. Essa é uma das vantagens de se estar sozinho em casa, você faz o que quiser e anda como quiser. Tranquei as portas e fechei as janelas. Não queria ver as luz do dia a não ser pelas ínfimas brechas que ela tentava passar, formando no chão e nas paredes desenhos engraçados. Tava realmente começando a esquecer tudo, mas nos distraímos por alguns segundos e logo vem a realidade. Que droga...

Deitei-me na cama e tentei pensar em algo que me distraísse. Lembrei-me daquela “parada” que um amigo tinha me dado. Aquele troço era bem legal, ajudava a relaxar, você ficava tranqüilo. É como se você estivesse dentro de um balde d'água e alguém te jogasse no chão, dai você se espalhava por toda a parte, vendo cada pedaço seu em lugares diferentes e podendo sentir cada um deles.

Naquele momento queria me sentir assim de novo. Queria me proporcionar isso já que ninguém o poderia fazer. Recentemente vi na televisão uma pesquisa falando que isso poderia causar males à saúde. Mas tenho vários amigos que usam e todos vivem bem, ao menos aparentemente. Que droga! Também não sou nenhuma criança, sei o que é bom para mim. Só tem uma coisa chata, fica um puta de um cheiro forte no ar e se você segurar entre os dedos uma porra daquelas também fica um cheirinho por mais que você lave. Bom, mas dá pra disfarçar. Aqui em casa o pessoal não gosta, mas também eles não vão chegar tão cedo, espero. Vou ter um bom tempo pra viajar legal e curtir cada momento, desde acender umzinho e sentir aquela fumaça fazendo efeito ate ver se apagar a ultima ponta.

Decidido do ia fazer, fui à cozinha pegar o fósforo. Vou acender no quarto mesmo. Antes de tudo, peguei o meu melhor vinil e coloquei pra tocar. Nada mais sugestivo. Naquele momento só faltava uma pessoa (de preferência do sexo oposto) pra dividirmos esse momento e alcançarmos o nirvana. Tudo bem, como sempre de uns tempos pra cá, as melhores coisas que tenho feito tem sido sozinho.

Acendi. Respirei aquela fumaça gostosa o máximo que pude. Deitado na minha cama e de olhos fechados escutando o melhor som do mundo, aquele momento se tornara perfeito. Senti-me aquela água sendo jogada do balde novamente só que dessa vez foi diferente, ao invés do chão fui diretamente arremessado na parede e, contrariando as leis da física, me mantive colado na parede deitado verticalmente olhando as outras partes que ficaram no balde.

No auge de toda essa viagem, ouço alguém abrindo a porta. Puta que pariu! O pessoal chegou. Meus pais já estavam abrindo a segunda porta quando eu tentava fazer circular aquela fumaça toda, mas não teve jeito. Quando eles entraram, se depararam comigo só de cuecas com cara de espanto num quarto cheio de fumaça e som rolando ao fundo. Tentava esconder "a arma do crime", mas não teve jeito. Meu pai com cara de reprovação puxou minhas mãos que estavam para trás e falou curto e grosso: no dia que você tiver que acender esse bagulho fedorento que seja bem longe daqui. Já lhe falei que sua mãe não gosta do cheiro desses incensos. Agora vá vestir uma bermuda que você está parecendo um doido! É isso mesmo, caros leitores. Manda quem pode e obedece quem tem juízo!

3.9.08

Leituras

Na parada de ônibus
parada
ela lia o livro e sorria

Na parada
parado
eu lia no seu rosto
o sorriso

E entre o riso
e o ônibus que
não vinha
eu me distraia
a imaginar:
parada ali ela está
mas nas páginas
daquele livro
paradeiro para ela
não há.

21.8.08

A festa


A pergunta era simples, mas a resposta exigia um pouco mais de reflexão que na exatidão daquele momento não poderia ser respondida.
– Acho que não – rebateu ele.
Na verdade ele não estava a fim. Já tinha pensado sobre isso antes e tinham chegado a uma meia conclusão.
– Não, esse ano, não. Não vejo motivos para isso.
– Mas porque não? – perguntou ela – afinal é seu aniversário!
– É, eu sei. Mas... não. Esse ano não vou fazer nada. A gente faz qualquer outra coisa, só nós dois. Toma um vinho... Ninguém vai lembrar mesmo!
Comemorar o aniversário, na verdade, nunca foi uma coisa que ele fazia questão. No entanto, das vezes que fez sempre achou legal. Na verdade isso era só uma desculpa para reunir os amigos, embora alguns levassem a coisa a sério e chegassem até a cantar o bendito “parabéns pra você”, a parte mais chata da festa. Sempre tem aqueles que fazem questão de cantar essa música, mesmo a contra gosto do aniversariante. Mas a questão pedia um pouco mais de reflexão. Não estava mesmo a fim de fazer nada naquele ano. Afinal de contas o que iria comemorar? Não será envelhecer se aproximar cada vez mais da morte? Ficou imaginando as pessoas na sua festa e ao invés de darem os parabéns, dariam os pêsames.
– Ah! Mas também seria legal chamar os nossos amigos, reunir todo mundo, conversar, beber algo... – Retrucou ela insistente.
– Mas a gente já faz isso quase toda semana.
– É, mas no dia do aniversário a gente ganha presente – respondeu ela logo em seguida tentando convencê-lo do contrário.
– Hummmm...
Aquela mulher era insistente. Mas não serão todas assim? Não será isto coisa intrínseca de tal gênero? Esta era. Ia até o fim com uma idéia. Além do mais gostava da festa, da reunião, da conversa, da bebida, dos amigos, da vida, da fala, do canto, da zuada, do fumo, da fumaça... Era um espírito dionisíaco, disso não temos nenhuma dúvida. Ele, por sua vez, sempre precisava de um empurrão pra pegar. Mas depois que pegava era como brasa acesa em dia seco de verão. Em várias ocasiões ela insistiu e insistiu e quando ele aceitou foi ela quem não segurou a onda até o final.
No bem da verdade, ele sempre achou importante comemorar os rituais de passagens da vida. E o aniversário não deixa de ser o maior de todos. Se não o maior, o mais freqüente; se não o mais freqüente, o mais auto-reflexivo. Após um bom tempo de argumentos de ambos os lados, ela já estava jogando com suas últimas cartas:
– Mas eu até já chamei algumas pessoas.
– Quer dizer que já tinha gente sabendo e eu não? – Perguntou ele espantado.
– É, avisei assim... informalmente.
Por alguns bons minutos ele ficou ali ruminando aquela história. Ela, por sua vez insistia na questão e jogou a seguinte pergunta:
– Afinal de contas qual o problema em se comemorar o aniversário? – No que ele respondeu:
– O problema não é comemorar o aniversário, mas comemorar as datas redondas. Isso sim é que é difícil!

5.8.08

Autobiografia não autorizada

Enquanto Caetano canta direto de Londres para os meus fones de ouvido eu fico pensando: “you don’t know me”. Talvez seja preciso tornar-me conhecido, pelo menos aos poucos que por aqui passam diariamente. A música continua e só escuto agora a batida do violão e me dá uma vontade de acompanhá-lo. Gal Costa entra no meio da música com a segunda voz. Da metade da música pro final vai aumentando o clímax da canção. Já não consigo mais me segurar e no balanço do corpo que acompanha a música começo a cantarolar. A voz tímida não consegue chegar. Tenta se projetar, ser audível, mas sai como um sussurro quase mudo.

Sou música, sou ritmo, sou ruído e sou silêncio. Mas, mais silêncio que outra coisa. Afinal, “não existiria som se não houvesse o silêncio?” Dos móveis da casa faço percussão: a caixa de fósforo é o ganzá, o prato é o pandeiro, o balde tem o som grave dos tambores... O corpo fala por si através das coisas que vai encontrando pelo caminho e enquanto ele se expressa o resto emudece. A natureza foi bastante injusta comigo: como pôde trazer ao mundo essa mistura de ritmo e timidez numa só pessoa? Às vezes a voz tenta, mas não chega; às vezes quero, mas não consigo. E tudo que precisa ser dito está na ponta da língua.

Quem melhor que um grande poeta para descrever tal situação em forma de verso? No seu poema “a idéia” (que se se chamasse “a fala” caberia perfeitamente no nosso exemplo) Augusto dos Anjos descreve todo o percurso através do qual surge a idéia: “... vem do encéfalo absconso que a constringe, chega em seguida às cordas do laringe, tísica, tênue, mínima, raquítica...”. Até que, por fim, depois de longo percurso misterioso “quebra a força centrípeta que a amarra, mas, de repente, e quase morta, esbarra no molambo da língua paralítica!”. A paralisia da língua não chega a ser total, não chega a ser uma tetraplegia. E quando não falo, às vezes falo demais ou falo o que não devo. Essas coisas não se explicam, mas penso que chega um momento que algo precisa ser dito, de uma forma ou de outra. Mas penso que o corpo também se expressa por outros meios. Um olhar pode dizer muita coisa, por exemplo. Às vezes exercito esses outros tipos de comunicação, pois para quem veio ao mundo “premiado” com tal particularidade, procurar outros meios de se expressar é preciso.

Há certas coisas que na vivência cotidiana vão se transformando e se reconfigurando. A identidade, por vezes, pode adquirir certas características de acordo com o meio e as pessoas ao nosso redor. Mas a natureza imprime no homem certas características que o particularizam e que este levará consigo pro resto de sua vida. Foi a sabedoria popular, junção misteriosa e amorfa do conhecimento coletivo, quem cristalizou um provérbio que resume bem tudo isso: “pau que nasce torto, morre torto!”. Aliás, já está mais do que imprimido no inconsciente coletivo aquela idéia de que a pessoa calada e introspectiva é o famoso “come quieto”. E quem nunca ouviu aquela frase que as pessoas já costumam dizer: “eu tenho é medo das pessoas quietas, pois quando elas explodem ninguém segura!?”.

E vejam só que interessante! Justamente hoje que estou escrevendo essas palavras sobre minha pessoa (não sei por quê) foi que descobri que sou introspectivo. Essa minha mania de olhar no dicionário as palavras foi que me levou a tal descoberta. Gosto de saber o significado certo das palavras e é claro que eu já sabia o que era uma pessoa introspectiva, mas mesmo assim vale uma olhada, só pra conferir e pra ter a certeza que vai estar tudo no seu lugar quando as pessoas lerem o texto. Mania de virginiano! Mas como dizia, descobri hoje que sou uma pessoa introspectiva! Vejamos então o que diz o dicionário (Houaiss) sobre tal palavra: introspectivo 1. em que se faz introspecção. 2. de caráter reflexivo, voltado para si próprio. Foi realmente uma autodescoberta. Se esse texto teve alguma validade, além da de ficar aqui uns dias exposto para apreciação, foi esta: autodescoberta. E realmente só agora liguei a palavra a minha pessoa. Às vezes, em meio a multidão, me pego introspectivo: olhar perdido em algum lugar no tempo, pupilas dilatadas como se as imagens na sua frente estivessem distorcidas (de fato, uma auto-sugestão que vêm do mais misterioso dos lugares de nosso ser e não efeitos causado por algum psicotrópico). E eis que de repente acordo e volto ao mundo. Mas tudo isso ocorre em questão de segundos, não mais que isso. Sou introspectivo! Agora que fiz esta descoberta me pergunto: isso é bom ou ruim?

Em algum lugar, lá em cima, falei que sou virginiano. Isso pode dizer muita coisa sobre as pessoas que nascem sob tal influência astrológica. Nunca acreditei nestas besteiras de horóscopos, aquelas coisas que se lê nos jornais todos os dias dizendo que “hoje o dia está propício para o amor ou aplicações financeiras ou quem sabe para amizades”, conversa afiada. Mas percebo que os signos dizem algo sobre as pessoas, não o que pode acontecer no seu dia-a-dia, mas características gerais que fazem parte dos indivíduos que nasceram sob determinado signo. Alguns podem até mesmo rirem ao lerem isso, mas quem foi mesmo que disse que a ciência e a razão era a salvação do mundo “encantado”? O projeto Iluminista, com base no mundo guiado pela razão, deu no que deu. Por outro lado, os revolucionários franceses não cumpriram sua promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade”. E a Modernidade, lugar das contradições, aprofundou mais ainda as desigualdades e a automatização do homem.

Mas deixemos a discussão sócio-filosófica de lado, aqui não é lugar para isso. Mas, como dizia, sou virginiano. Também não sei se isso é bom ou ruim, confesso. Virginiano com ascendente em leão. Pronto, ainda tem mais essa! A verdade é que conhecer é preciso e esta também é uma forma de conhecimento e se não ajuda, atrapalhar também não atrapalha, não é verdade? Então, li em algum lugar (na verdade são “perspectivas tangíveis”) que o virginiano (com ascendente em leão) “sugere uma natureza criativa e executiva” e que tem “uma visão realista positiva das coisas que acontecem”. Além disso, tal pessoa possui um “apreço pela verdade que pode lhe levar a ser, eventualmente, uma pessoa muito dura”. E, segundo tais perspectivas misteriosas, “a contradição maior entre virgem e leão diz respeito a um choque entre sua percepção de suas capacidades e ‘surtos’ de humanidade excessiva”. Olhando direitinho, vejo que algo do que foi dito bate comigo. Para além disso, há ainda uma característica que todo virginiano possui (será?): é uma pessoa extremamente organizada, prática e que pensa da seguinte forma: “já que isso tem que ser feito, que seja bem feito!”. E é aí que o virginiano sofre, pois nem sempre as pessoas ao seu redor (e às vezes até ele mesmo) agem dessa forma. Quanto a isso eu não tenho dúvidas: sou um perfeccionista nas coisas que faço, levo horas revisando meus textos (e justamente agora me vêm à lembrança – ela faz isso de propósito, eu sei – que preciso escrever um artigo... e tome horas na frente do computador!) Mas, por outro lado, às vezes relaxo com essas coisas e vou deixando passar... Afinal, somos todos seres contraditórios e possuímos em nós porções desiguais e que variam de pessoa para pessoa, do bem e do mal, de amor e de ódio, de felicidade e de tristeza, de paz e guerra...

Vejam só vocês, já escrevi mais de duas laudas sobre minha pessoa (e você, caro leitor que chegou até aqui, está de parabéns pela paciência). Coisa outrora impensável! Será alguma mudança nos astros? Acho que vou ficando por aqui. Afinal, esta é uma autobiografia não autorizada. E já que começamos esta conversa com música, terminemos então com música. Caetano já voltou de Londres e, na minha vitrola, onde o vinil acabou de tocar o lado B de seu melhor álbum (pelo menos para mim): o álbum “Transa”, coloco agora a música dos Secos e Molhados feita sob medida para este que nasceu sob o signo maldito de virgem. A música se chama “Fala”:



Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto

Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto

Fala
Fala

Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto

Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto

Fala
Fala

31.7.08

A carta


“Quando faltamos a nós mesmo, tudo nos falta”.
Os sofrimentos do jovem Werther.
(Goethe)


Pensei bastante sobre o meu ato e confesso que desde que me veio à cabeça tal idéia não consegui encontrar melhor desfecho para minha situação. Portanto, quero que fique claro para todos que este não foi um ato inconseqüente ou que um pouco mais de paciência e tempo poderia sanar meu atual estado.

Dizem que o tempo é o melhor remédio para qualquer mal. Balela! Pura besteira! No meu caso, o tempo só agravaria mais o que sinto. Ultimamente não conseguia nem ao menos olhar para o relógio sem que isso fosse para mim uma tortura das mais cruéis. Agora entendo todos aqueles que partiram. Talvez se sentissem da mesma forma que me sinto agora e se é assim, não tenho mais dúvidas do que me espera logo mais. Alguém apressado poderia até mesmo dizer que esta foi uma decisão muito difícil de ser tomada. Pelo contrário, difícil foi ficar aqui neste mundo procurando um motivo para estar entre vocês, meus familiares, meus amigos e demais conhecidos sem algo que me desse prazer para isso. Não falo isso por vocês, mas por mim mesmo. A verdade é que nem mesmo o sorriso da minha sobrinha que acabou de vir ao mundo conseguia me fazer menos infeliz. E vejam só vocês como é a vida, há sempre aqueles que chegam para os que partem! E para os que partem o que é que há? Comecei a pensar nesta situação há pouco. Mas nem mesmo isso conseguiu me fazer mudar de idéia. Não estou preocupado com a caminhada que irei fazer, o que me angustia é o estar aqui.

Espero que vocês não entendam o meu ato como covardia, medo, desespero ou qualquer coisa do tipo. Quero sim que o encarem como um ato de coragem, de decisão e afirmação. Apenas uma escolha. Por algum tempo me angustiou a reação que isso tudo poderia causar entre vocês, então procurei me ocupar com outros pensamentos e outros afazeres. Daí tentei me apegar as coisas materiais que outrora me davam prazer e só então percebi o vazio que elas trazem. Vejam só como são as coisas, pensar sobre isso me fez tentar esboçar involuntariamente um sorriso irônico e nem mesmo minha pequena sobrinha com toda a sua inocência conseguiu tal proeza. Percebi então que o problema não era material, mas sim espiritual.

Já não faço mais parte deste mundo, já não sinto mais graça das piadas da vó Eugenia que depois de velha perdeu o pudor com os palavrões. Já não vejo mais as pessoas que passam por mim e nem mesmo me comovi com o nascimento da filha de Chico, meu melhor amigo. Assim como também não me comovi com o aborto espontâneo pelo qual passou a vizinha recentemente. Pra mim, certo estava ele: partiu antes mesmo de chegar.

Ficar aqui entre vocês na situação em que me encontro seria doloroso tanto para mim quanto para aqueles que gostam de mim. Por isso devo partir. Quero que chorem tudo que precisa ser chorado até a última lágrima. Depois, quando estas secarem, aí sim vocês começarão a entender o porquê do meu ato. Não quero rezas e nem pedidos de perdão para mim. Perdão para que? Será que não sou dono da minha própria vida? Será que não sei o que é melhor para mim? Se não fosse absurdo meu pedido gostaria que, ao invés de lágrimas, sorrisos; ao invés de rezas, festejos; ao invés de perdão, aplausos pela coragem da minha decisão.

“A natureza humana tem seus limites; pode suportar até certo ponto a alegria, a mágoa, a dor, mas passando deste ponto ela sucumbe. A questão não é, pois, saber se um homem é fraco ou forte, mas se pode suportar o peso dos seus sofrimentos, quer morais, quer físicos. Eu acho tão espantoso que se chame de covarde ou de desgraçado àquele que se priva da vida, como acharia impertinente tachar de covarde ao que sucumbe a uma febre maligna”[1].

A meu pai, agradeço ao esperma premiado que entre milhares conseguiu achar o caminho das pedras. A minha mãe, agradeço a paciência dos nove meses e todo carinho que me dedicou até hoje. A meus irmãos, peço que confortem nossos pais e cuidem bem de seus filhos. A meus amigos e colegas agradeço todos os momentos de companheirismo e cumplicidade. A todos deixo um abraço forte e levo comigo, seja lá para onde quer que eu vá agora, a lembrança de cada um de vocês.
Adeus.

[1] Os sofrimentos do jovem Werther. (Goethe)

11.7.08

O Dinheiro

Recebeu o troco e notou a frase escrita na nota de dez reais: “Deus é fiel”. Olhou atento para aquela frase por três segundo e depois tacou a nota no bolso esquerdo da calça Jeans e saiu.

Depois de um tempo, já na solidão e languidez de sua casa, ficou pensando porque alguém escreveria tal heresia numa nota. A heresia não seria pelo fato de Deus ser fiel, como diz a frase, mas pelo fato de alguém tê-la escrito numa nota que possui um determinado valor e serve como moeda de troca. Sendo assim, Deus pode até ser fiel (há quem pense o contrário!) mas o dinheiro só tem fidelidade a quem o possui e esta fidelidade se resume a um instante fulgás, até o momento em que ele é trocado por algum objeto qualquer; daí em diante a sua fidelidade pertence a outro, também por um momento fulgás.

Ficou pensando na contradição daquela frase no dinheiro: “Deus é fiel. O dinheiro, não!” Dizia ele para si mesmo. Depois de muito pensar, viu uma coisa positiva naquilo tudo e começou a avaliar a sua relação com o dinheiro: “e eu, sou fiel ao dinheiro?” Pensava preocupado. “Coloco o dinheiro como prioridade na minha vida?”. Depois dessas reflexões, viu que o dinheiro, pelo menos para ele, era apenas algo necessário para se obter alguns bens indispensáveis para manutenção da sua existência e não algo autônomo, com vida própria; apenas um meio para se atingir um fim e não o fim em si.


Para ele, a felicidade e satisfação da vida não estava ligada a posse do dinheiro. Assim, pensou nosso personagem, ele não era fiel ao vil metal e tendo chegado a esta conclusão tratou logo de passar a nota maldita pra frente e foi tomar uma cerveja no buteco da esquina. “Não sou fiel ao dinheiro. Sou fiel a mim mesmo, a vida, ao amor, aos amigos, a esta cerveja; a Baco e a Dionísio ao mesmo tempo”, dizia nosso amigo para si com longas risadas. Depois de tomar quatro cervejas (cada uma a R$ 2,50) entregou a nota ao dono da budega, que também não deixou de perceber a frase com letras garrafais. Estranhou e pensou por alguns segundos se aceitava a nota pra logo em seguida jogá-la na caixa registradora dizendo: “Deus é fiel?! Tô sabendo...



"Dinheiro é um pedaço de papel
(...)
Dinheiro tem valor quando se gasta

Um pedaço de papel é um pedaço de papel
Dinheiro não se leva para o céu".

Dinheiro.

(Arnaldo Antunes e Jorge Benjor)

1.7.08

Olhos vestidos de luneta

"Olhar você e não saber..."
Marina Lima
Composição: Dalto/Cláudio Rabello




Aquele olhar tinha direção certa e era só questão de tempo perceber que aqueles olhos estavam só a lhe mirar.

Ao perceber, deu-lhe um desajuste, uma coisa sem jeito que tentou disfarçar mas pouco adiantou. Ficou pensando, pensando... Deu uma olhada ao redor fingindo não ser para ele e, quando não tinha mais para onde olhar, viu de fato que aqueles olhos miravam-lhe quase atravessando-o.

Parou e encarou também. Ficaram ali se olhando por um interminável tempo. As pessoas iam e vinham apenas acelerando a data de suas mortes. Já sem se importarem com nada, apenas ficaram ali suspensos no tempo.

No meio daquela situação surge mutuamente uma leve vontade de sorrir que vai tomando conta dos dois até explodirem em risadas. As pessoas que passavam não entendiam nada. Mas não importava, já haviam conquistado muito naquele dia. E foram embora com um leve ar de criança feliz.


"O seu olhar agora
O seu olhar nasceu
O seu olhar me olha
O seu olhar é seu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu"

O seu olhar (Paulo Tatit / Arnaldo Antunes)

27.6.08

Segredos

Quando descobri seus segredos, tudo ficou sem graça. Sem cor, sem forma, sem quê nem porquê. Ficou sem norte. Então me perdi errante no mundo a procura de novos mistérios que alimentassem essa fome estranha que nunca sacia; esse mar que por mais que se eleve parece não ter fim; esse copo d'água que nunca enche, embora a torneira goteje incansavelmente.

" É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar". (Gilberto Gil)

19.6.08

Pensamentos da ultima noite 2

Contradições:



Alargaram as ruas, eu vi.
Eu estava lá. Com isso, os carros
poderiam passar velozes. Afinal,
não é pra isso que são feitos?
Mas que ironia! Parece que agora é
que eles estão correndo menos.

Tudo o que se produziu até hoje,
em se tratando de conhecimento, cabe num chip.
Também fica mais fácil de perdê-lo.


Parece que quanto mais a ciência avança,
mais somos infelizes.


Quando criança, vivenciamos a infância.
Quando velho, também.

Em um ônibus cheio de gente,
cada um tem seu MP3 Player.
Um espaço coletivo com pessoas
e suas ilhas.

O chão no qual se apóia a
Pós-modernidade é fragmentário.

Pós-moderno
Pós-doutor
Pós-hipócrita
Pós-burocrata
Pós-machista
Pós-fascista
Post mortem


Comprei uma televisão 52" LCD Full HD c/ 2 HDMI - USB PIP - 52LB9RFB LG.
Ainda assim, é tanta mentira que não cabe na tela.

Nos dias de hoje, parece que quanto
mais idiota se é, melhor!

A aspirina cura a dor de cabeça,
a pílula evita o filho.
Mas ainda não inventaram a fórmula do amor.

Comprei um carro na esperança de ser feliz,
mas dividi em 48 meses.

A arte mais marcante
é filha da dor.

Deus não é nosso pai,
é nosso filho.

Na hora do desespero faça
como o Chico (Buarque): chame o ladrão.

O fim é sempre um começo
que leva a outro fim.

22.4.08

Pensamentos da ultima noite

Parem os relógios!

Pra quê precisamos marcar
a hora de nossa morte?
Marquemos então
a hora de nossas vidas: parem os relógios!




O homem moderno

O homem moderno se enfeitiçou
pela mercadoria.
Esta tomou conta de sua vontade.
Fez dele um escravo.
O ultimo modelo enfeitiçou-lhe até seus olhos brilharem.
Não conseguiu vender o que tinha,
então jogou fora no lixo pra ter um mais novo.
Pagou os olhos da cara,
ficou devendo, ficou liso,
dividiu em pesadas prestações a perder de vista.
Mas ficou na moda, ficou bem visto entre os amigos,
ficou de bem com seu amor, ficou até mais charmoso...
ficou “bem”, mas, até o ladrão ficar sabendo.
Pois até este tem o direito de ser um
homem moderno, não?




TV

Ligo a TV.
Pra quê?
Se olho e não vejo nada.
Como um idiota, com o
controle na mão,
subo e desço os canais,
aumento e baixo o volume.
O melhor programa é aquele do
chiado branco na tela.



Os sábios

Os sábios imaginam que
sabem sobre as coisas por demais
e não percebem que quase sufocam
os outros com o tamanho de seu ego.
Foi uma criança, filosofa
por natureza, que lhes ensinou
o segredo de ouvir as
pessoas de vez em quando.
Mas já era tarde demais,
o vício já lhes tinha feito morada.



O tempo

Quem inventou o tempo
não teve tempo
de ver a merda
que fez, presumo.
Mas a merda maior é que
não há mais tempo para
voltar atrás.

6.4.08

Ladrão de Palavras

Estas próximas palavras não são minhas! Nem mesmo sei a quem pertencem. Só sei que as roubei. Estampadas em capas e encartes de discos, foram esquecidas pelos seus donos ao longo do tempo. Com a revolução tecnológica que permitiu a substituição dos antigos vinis por cd’s, no final da década de 80 e início dos anos 90, estas palavras foram vendidas impressas em vinis pela força da mão que pressionava o lápis em seus encartes no intuito de deixar para o futuro a lembrança do presente.

Talvez a doce nostalgia dessa lembrança não fosse tão doce assim. Quem sabe estes que se dizem amigos já não o são mais hoje. Quem sabe o casal apaixonado já não é mais tão apaixonado assim. Talvez até nem estejam mais juntos. Enfim, duvido que depois de tanto tempo alguém venha reclamá-las. Mas, pensando bem, qual o crime maior, o meu ou o deles? Não fui eu quem vendeu estas palavras dedicadas com tanto afeto nos discos. Afinal, onde estão todos eles agora? Apareceriam e me condenariam pelo meu crime? Me censurariam? Ou será que nada diriam ao saberem que sei de seus crimes também? De toda forma o meu crime já prescreveu. Então repito: estas palavras não são minhas!


“Passaram-se os anos
Passaram-se os meses
Passaram-se os dias
Mas não passaram
A lembrança eterna
De uma amizade que
Lutamos para perpetuar” .
(Fevereiro de 1987)
Disco: Vida de Chico Buarque (1980)

“Não tenho tudo que quero,
Mas amo tudo que tenho”.
Disco: Roberto Carlos (1990)

“Vilma, aceite esta simples lembrança
De todo coração pela passagem
Desta magnífica data.
De sua amiga Neide”
(16/01/80)
Disco: Mel de Maria Bethânia

“Se todos os que vivem juntos se
Amassem, a terra brilharia mais que o sol”
Rose (18/07/82)
Disco: Amar de Simone (1981)


“Vilma, aceite esta simples lembrança
Com muito carinho pela passagem de
seu aniversário”. (16/01/83)
Disco: Nossos Momentos de Maria Bethânia (1982)
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E enquanto este post é publicado escutamos um bom
e velho vinil de Caetano: Transa (1972).

26.3.08

Chuva

A rua chorou
mas só depois
que a chuva veio.

A fumaça, as pegadas,
as marcas de pneus de carros,
o coco do cachorro, a areia...
tudo que estava na frente
da água que corria foi-se
com ela.

A rua chorou
e foi depois
que a chuva veio.
Ninguém sabe se foi
choro de alegria
ou de tristeza.

28.1.08

É carnaval

... Amanhã, tudo volta ao normal
Deixe a festa acabar
Deixe o barco correr
Deixe o dia raiar...


(Noite dos mascarados - Chico Buarque)




A maior tristeza é a que vem depois do carnaval. Quando a banda para de tocar, ou melhor, vai parando aos poucos, os músicos recolhem seus instrumentos e nós assistimos tudo. Quando o riso, a alegria, a energia, o frenesi, o delírio e toda a loucura do carnaval vão cedendo espaço para o cansaço do corpo físico. Quando a gente olha o chão cheio de confetes e serpentinas espalhados por todos os lados e na nossa cabeça ainda toca aquela música que levanta multidões numa alegria só, mas que naquele momento só restou o rastro dela.

Quando o Pierrot retira maquiagem do rosto e revela toda a sua tristeza por não ter sido correspondido pela Colombina e saber que vai ter que esperar até o próximo carnaval. Quando o porta estandarte recolhe o pau de sua bandeira. Quando embriagado e ainda zonzo tentamos nos orientar, nos levantar aos poucos daquele chão que dormimos (por alguns minutos, horas...?) e, nos apoiando em alguma coisa, nos erguemos, olhamos para os lados e, ao acharmos a direção do caminho, seguimos sozinhos como um equilibrista, com aquela música ainda tocando na cabeça, o caminho solitário de volta pra casa. Essa é a pior tristeza que há.