19.2.07



Pequenas Histórias


nº 6


Na pacata cidade de Albarã vivia seu Aroldo. Farmacêutico não por formação, mas por tempo de trabalho e experiência. Aprendera com o pai o ofício de doutorar e se orgulhava de nunca ter passado um remédio errado ou até mesmo de nunca ver ninguém morrer por conta de suas orientações médicas. “É claro que quando é chegado a hora e Deus quer levar um dessa terra, não tem remédio que dê jeito”, dizia ele em alto e bom som nas conversas em sua farmácia nas horas de ócio.

Qualquer doença na cidade era com ele mesmo. “Chama seu Aroldo que ele resolve” dizia o povo da cidade quando uma criança, um jovem ou um velho adoecia. Também era rezador e tirava mal olhado, quebrante, olho gordo, vento ruim, maleita e impaludismo; bruxaria, feitiçaria e espírito mau; espírito atrasado, malvadeza, rastro apanhado e credos encruzados. Bastava uma olhada rápida na pessoa e como que visse algo além, disparava na hora: “você ta precisando de reza”. Pra qualquer tipo de problema, seu Aroldo tinha a solução: pegava um ramo de planta que tinha no quintal e ia benzer o enfermo até o galho murchar. Depois dava uns conselhos do tipo: “evite posicionar a cama na frente da porta do quarto”, “coloque uma fita vermelha na maçaneta da porta e na cama” e “coloque um crucifixo em cima da porta do quarto pra abençoar e proteger. E agora vá com Deus e Nossa Senhora”.

Seu Aroldo era tão requisitado que quando os médicos diplomados de outras cidades vizinhas não davam jeito no moribundo, mandavam (meio que a contragosto, é claro) a família procurá-lo em Albarã. Nas suas visitas diárias deixava um rapaz (seu aprendiz e único herdeiro de seus conhecimentos) na farmácia e ia ver qual era o problema.

Acontece que um dia, depois de fortes chuvas que caíram nas redondezas, o rio que passa bem ao lado da cidade transbordou e a população se viu em desespero. Foi como num piscar de olhos: o rio invadiu a cidadezinha levando tudo pela frente, alagando casas, lojas, prefeitura e nem as imagens dos santos no altar da igreja ficou de fora. Teve até uma beata que jurava que foram as lágrimas de São Pedro, que chorou por conta dos pecados da humanidade, que inundou a cidade.

Neste dia, seu Aroldo estava na farmácia. Era um dia chuvoso e bucólico, sem muita agitação. De uma hora pra outra percebeu a correria das pessoas e a água que tomava toda a cidade. Não pensou duas vezes: fechou a porta de sua farmácia e se trancou lá dentro. A água engolia a cidade com feroz rapidez, parecia mesmo um dilúvio que caia do céu. Pela janela seu Aroldo via a água subir e pelas brechas jorravam feito cachoeira. Neste instante, lhe bate um desespero. Ele olha todos aqueles remédios ao seu redor, as marcas pareciam gigantes nos frascos como se rissem da cara dele; podia mesmo ouvir as gargalhadas, cada uma de jeito. Acetil Aspartilglutamato, Hexomedine, Ciclopirrolona Acido Fólico, Daforin, Bamifilina, Albendazol, Deprozol, Probenecida, Bamifilina e tantas outras, numa sinfonia ensurdecedora, zombavam dele e daquela situação ridícula. Em meio a tudo isso, a água não parava de subir e seu Aroldo já não podia mais ouvir os risos, via apenas as caixas dos remédios boiando e rindo para ele debaixo d’água.

Seu Aroldo, logicamente, morreu num desespero agonizante e com um pensamento na cabeça: “tanto remédio ao meu redor e nenhum deles pode salvar minha vida agora”. Tempos depois do ocorrido toda a população lembrava-se da máxima de seu Aroldo: “quando é chegado a hora e Deus quer levar um dessa terra, não tem remédio que dê jeito”.


Pequenas Histórias


nº 5


Na vitrola um disco girava sem parar. Tinha chegado ao final do lado A e o braço da agulha ficou lá no canto rasgando os sulcos do LP velho e arranhado.

O volume estava alto e se ouvia de longe o chiado provocado pelo atrito da agulha. Bati na porta mas ninguém atendeu. Depois de um tempo, percebi que estava aberta e entrei. Chamei pelas pessoas da casa e ninguém respondia e fui entrando. Estranhei aquilo tudo, parecia que não havia ninguém ali. Quem deixaria a porta de casa aberta com um som ligado assim nas alturas?

Insisti e chamei mais alto, bati palmas e até gritei. Quando já estava desistindo e virando as costas para partir, alguém aparece. Com um sorriso meio sem graça pedi desculpas e falei... Ela disse pra eu virar o outro lado do disco e me pediu pra lhe acompanhar. Tinha uma fumaça por toda parte e do quarto em que ela entrou brilhava uma luz forte. Ouvi apenas sua voz dizendo “vem!”. Num ultimo instante percebi que o som que girava na vitrola era um chiado constante que, a primeira audição, parecia chato e incomodava; mas depois, como se multiplicassem e se misturassem, ouvia-se bem uma música se formar estranhamente no ar. Nesse instante, sou engolido pela luz que sai do quarto e como se o chão e todas as paredes sumissem, caio no vazio e apago.

Voamos alto. Ninguém nos percebia. Era como se fossemos deuses, o gozo dos deuses. Bebemos da bebida proibida e fizemos tudo que não era permitido. Acima do bem e do mal; do certo e do errado; do sim e do não; do verdadeiro e do falso; do nada e de tudo... tínhamos poderes sobre o ontem, o agora e o amanhã. Éramos tanto homem como mulher, tanto filho como pai, tanto homem como animal...

Uma voz bem distante parecia chamar por alguém já há um bom tempo. Voltei. Olhei em seus olhos e pedi pra que ele virasse o outro lado do disco e que me acompanhasse. Mais uma pessoa iria se encontrar com o deus que até então estava reprimido dentro dela.

Pequenas Histórias


nº 4


Abriu a porta com a mão trêmula fechando-a rapidamente e sentou-se na primeira cadeira que viu na sua frente. Acendeu um cigarro e logo em seguida encheu o copo de Rum e deu um trago de uma só vez.

Se perguntava como teve tanta coragem para fazer o que fez. Ficou imaginando o noticiário do dia seguinte nas páginas policiais exibindo sua foto e detalhando todo o ocorrido, além do pouco mais que os repórteres sempre acrescentam para vender a notícia. Correu para o banheiro. Lavou as mãos jogando a água no rosto na tentativa de limpar de sua cabeça a lembrança do acontecido da ultima meia hora.

Não tinha jeito. Sabia que iria enlouquecer se ficasse dentro daquele apartamento fechado junto com seus fantasmas. Num instante de loucura, saiu correndo para uma delegacia mais próxima e contou tudo o que se passou ao delegado. Este, não acreditando no que ouvia, mandou que alguém fosse averiguar o caso. Mesmo após confessar o que se passara, não teve sossego. Seus olhos percorriam a sala fedorenta a cigarro como se procurasse algo, como se quisesse ver outra coisa que não fosse as imagens que insistiam em surgir em toda parte em que olhava. Escutava as vozes do corredor e as pessoas passando e aquele barulho infernal de delegacia tumultuada. O delegado percebeu a agitação dele e num vacilo seu o acusado pega a arma que estava sobre a mesa e dá um tiro na cabeça.

No outro dia, nas páginas policiais, a história é narrada com todos os detalhes possíveis. Além do pouco mais que os repórteres sempre acrescentam para vender a notícia.