5.8.08

Autobiografia não autorizada

Enquanto Caetano canta direto de Londres para os meus fones de ouvido eu fico pensando: “you don’t know me”. Talvez seja preciso tornar-me conhecido, pelo menos aos poucos que por aqui passam diariamente. A música continua e só escuto agora a batida do violão e me dá uma vontade de acompanhá-lo. Gal Costa entra no meio da música com a segunda voz. Da metade da música pro final vai aumentando o clímax da canção. Já não consigo mais me segurar e no balanço do corpo que acompanha a música começo a cantarolar. A voz tímida não consegue chegar. Tenta se projetar, ser audível, mas sai como um sussurro quase mudo.

Sou música, sou ritmo, sou ruído e sou silêncio. Mas, mais silêncio que outra coisa. Afinal, “não existiria som se não houvesse o silêncio?” Dos móveis da casa faço percussão: a caixa de fósforo é o ganzá, o prato é o pandeiro, o balde tem o som grave dos tambores... O corpo fala por si através das coisas que vai encontrando pelo caminho e enquanto ele se expressa o resto emudece. A natureza foi bastante injusta comigo: como pôde trazer ao mundo essa mistura de ritmo e timidez numa só pessoa? Às vezes a voz tenta, mas não chega; às vezes quero, mas não consigo. E tudo que precisa ser dito está na ponta da língua.

Quem melhor que um grande poeta para descrever tal situação em forma de verso? No seu poema “a idéia” (que se se chamasse “a fala” caberia perfeitamente no nosso exemplo) Augusto dos Anjos descreve todo o percurso através do qual surge a idéia: “... vem do encéfalo absconso que a constringe, chega em seguida às cordas do laringe, tísica, tênue, mínima, raquítica...”. Até que, por fim, depois de longo percurso misterioso “quebra a força centrípeta que a amarra, mas, de repente, e quase morta, esbarra no molambo da língua paralítica!”. A paralisia da língua não chega a ser total, não chega a ser uma tetraplegia. E quando não falo, às vezes falo demais ou falo o que não devo. Essas coisas não se explicam, mas penso que chega um momento que algo precisa ser dito, de uma forma ou de outra. Mas penso que o corpo também se expressa por outros meios. Um olhar pode dizer muita coisa, por exemplo. Às vezes exercito esses outros tipos de comunicação, pois para quem veio ao mundo “premiado” com tal particularidade, procurar outros meios de se expressar é preciso.

Há certas coisas que na vivência cotidiana vão se transformando e se reconfigurando. A identidade, por vezes, pode adquirir certas características de acordo com o meio e as pessoas ao nosso redor. Mas a natureza imprime no homem certas características que o particularizam e que este levará consigo pro resto de sua vida. Foi a sabedoria popular, junção misteriosa e amorfa do conhecimento coletivo, quem cristalizou um provérbio que resume bem tudo isso: “pau que nasce torto, morre torto!”. Aliás, já está mais do que imprimido no inconsciente coletivo aquela idéia de que a pessoa calada e introspectiva é o famoso “come quieto”. E quem nunca ouviu aquela frase que as pessoas já costumam dizer: “eu tenho é medo das pessoas quietas, pois quando elas explodem ninguém segura!?”.

E vejam só que interessante! Justamente hoje que estou escrevendo essas palavras sobre minha pessoa (não sei por quê) foi que descobri que sou introspectivo. Essa minha mania de olhar no dicionário as palavras foi que me levou a tal descoberta. Gosto de saber o significado certo das palavras e é claro que eu já sabia o que era uma pessoa introspectiva, mas mesmo assim vale uma olhada, só pra conferir e pra ter a certeza que vai estar tudo no seu lugar quando as pessoas lerem o texto. Mania de virginiano! Mas como dizia, descobri hoje que sou uma pessoa introspectiva! Vejamos então o que diz o dicionário (Houaiss) sobre tal palavra: introspectivo 1. em que se faz introspecção. 2. de caráter reflexivo, voltado para si próprio. Foi realmente uma autodescoberta. Se esse texto teve alguma validade, além da de ficar aqui uns dias exposto para apreciação, foi esta: autodescoberta. E realmente só agora liguei a palavra a minha pessoa. Às vezes, em meio a multidão, me pego introspectivo: olhar perdido em algum lugar no tempo, pupilas dilatadas como se as imagens na sua frente estivessem distorcidas (de fato, uma auto-sugestão que vêm do mais misterioso dos lugares de nosso ser e não efeitos causado por algum psicotrópico). E eis que de repente acordo e volto ao mundo. Mas tudo isso ocorre em questão de segundos, não mais que isso. Sou introspectivo! Agora que fiz esta descoberta me pergunto: isso é bom ou ruim?

Em algum lugar, lá em cima, falei que sou virginiano. Isso pode dizer muita coisa sobre as pessoas que nascem sob tal influência astrológica. Nunca acreditei nestas besteiras de horóscopos, aquelas coisas que se lê nos jornais todos os dias dizendo que “hoje o dia está propício para o amor ou aplicações financeiras ou quem sabe para amizades”, conversa afiada. Mas percebo que os signos dizem algo sobre as pessoas, não o que pode acontecer no seu dia-a-dia, mas características gerais que fazem parte dos indivíduos que nasceram sob determinado signo. Alguns podem até mesmo rirem ao lerem isso, mas quem foi mesmo que disse que a ciência e a razão era a salvação do mundo “encantado”? O projeto Iluminista, com base no mundo guiado pela razão, deu no que deu. Por outro lado, os revolucionários franceses não cumpriram sua promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade”. E a Modernidade, lugar das contradições, aprofundou mais ainda as desigualdades e a automatização do homem.

Mas deixemos a discussão sócio-filosófica de lado, aqui não é lugar para isso. Mas, como dizia, sou virginiano. Também não sei se isso é bom ou ruim, confesso. Virginiano com ascendente em leão. Pronto, ainda tem mais essa! A verdade é que conhecer é preciso e esta também é uma forma de conhecimento e se não ajuda, atrapalhar também não atrapalha, não é verdade? Então, li em algum lugar (na verdade são “perspectivas tangíveis”) que o virginiano (com ascendente em leão) “sugere uma natureza criativa e executiva” e que tem “uma visão realista positiva das coisas que acontecem”. Além disso, tal pessoa possui um “apreço pela verdade que pode lhe levar a ser, eventualmente, uma pessoa muito dura”. E, segundo tais perspectivas misteriosas, “a contradição maior entre virgem e leão diz respeito a um choque entre sua percepção de suas capacidades e ‘surtos’ de humanidade excessiva”. Olhando direitinho, vejo que algo do que foi dito bate comigo. Para além disso, há ainda uma característica que todo virginiano possui (será?): é uma pessoa extremamente organizada, prática e que pensa da seguinte forma: “já que isso tem que ser feito, que seja bem feito!”. E é aí que o virginiano sofre, pois nem sempre as pessoas ao seu redor (e às vezes até ele mesmo) agem dessa forma. Quanto a isso eu não tenho dúvidas: sou um perfeccionista nas coisas que faço, levo horas revisando meus textos (e justamente agora me vêm à lembrança – ela faz isso de propósito, eu sei – que preciso escrever um artigo... e tome horas na frente do computador!) Mas, por outro lado, às vezes relaxo com essas coisas e vou deixando passar... Afinal, somos todos seres contraditórios e possuímos em nós porções desiguais e que variam de pessoa para pessoa, do bem e do mal, de amor e de ódio, de felicidade e de tristeza, de paz e guerra...

Vejam só vocês, já escrevi mais de duas laudas sobre minha pessoa (e você, caro leitor que chegou até aqui, está de parabéns pela paciência). Coisa outrora impensável! Será alguma mudança nos astros? Acho que vou ficando por aqui. Afinal, esta é uma autobiografia não autorizada. E já que começamos esta conversa com música, terminemos então com música. Caetano já voltou de Londres e, na minha vitrola, onde o vinil acabou de tocar o lado B de seu melhor álbum (pelo menos para mim): o álbum “Transa”, coloco agora a música dos Secos e Molhados feita sob medida para este que nasceu sob o signo maldito de virgem. A música se chama “Fala”:



Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto

Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto

Fala
Fala

Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto

Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto

Fala
Fala

2 comentários:

Isabella Araújo (Zabella) disse...

Há tantas coisas para se comentar desse post que eu não saberia nem por onde começar...
Essa de “introspecção”, por exemplo. Eu entendo que existe uma diferença fundamental entre timidez e introspecção, porque timidez pra mim tem a ver com insegurança, mas introspecção é uma forma de perceber as coisas. De perceber voltando-se para si. Há uma riqueza enorme nesse universo particular.
E nem sempre se consegue externar isso de forma clara...
Eu mesma adoro sentir qual é a dos outros, interagir, me exponho também, mas me dou todas as reservas. Dá pra entender isso¿
Já que é pra falar em contradições, não há nada mais poderoso na comunicação que o silêncio...
E você sofre da influência má dos signos do zodíaco... :P

Anônimo disse...

Interessante, não havia pensado sobre essa diferença entre timidez e introspecção. Mas a fronteira entre as duas coisas é bem pequena.
Às vezes também sou assim como você falou: de interagir, de se expor, mas em outros momentos prefiro ficar na minha. Não sei bem se é preferência, não sei se se escolhe isso, apenas acontece.
E o silêncio, como diz Arnaldo Antunes, "foi a primeira coisa que existiu, o silêncio que ninguém ouviu".

:-)