– E voltamos já com más notícias! – Falou o apresentador do telejornal recolhendo os papéis espalhados por cima de sua mesa. Fiquei um tempo pensando se tinha escutado bem ou se ele tinha tropeçado na sua própria língua.
Escutei com certo espanto aquele almofadinha engravatado que vomitava diariamente as mesmas baboseiras e desgraças da vida alheia. A única diferença é que as desgraças que abrem o noticiário só mudam de lugar e acontecem com pessoas diferentes, de resto é todo dia a mesma coisa: morte, brigas, corrupção... Não sei se vocês já perceberam, mas a maioria dos noticiários começam sempre com as desgraças e quando acaba a reportagem, em seguida vem outra nada a ver com a anterior. E assim vamos esquecendo os infortúnios da vida (principalmente os alheios) como se estes não tivessem acontecidos. Então dei uma zapeada nos canais e desliguei a TV. Fui dar uma volta pela cidade e respirar ar puro. Era noite, já passava das 20h00. Tranqüilidade. Não muito longe de minha casa ficava meu escritório de advocacia. Fui andando até lá, só pra passar de frente, não tinha mesmo o que fazer.
Antes mesmo de dobrar a esquina sinto um cheiro de fumaça no ar. Ao virar à esquerda vejo meu escritório ardendo em chamas iluminando a cidade. O fogo parecia procurar o céu e os papéis queimados dançavam no ar ao sabor do vento. Não consegui nem mesmo me desesperar. Um silêncio se abateu sobre mim e nos meus olhos brilhavam aquelas chamas. Nenhuma reação, nenhuma lágrima, nenhum gesto... nada. Dobrei a esquina e fiz o mesmo caminho de volta pra casa. Sentei no sofá, peguei o controle remoto que estava ao lado e liguei a televisão.
Dizem que a TV tem um poder anestésico que provoca uma certa apatia, um desinteresse, uma impassibilidade e era justamente isso que eu queria naquele momento: esquecer por uma longa sucessão de segundos, minutos, horas... tudo aquilo até o outro dia. Mas eis que Deus ou sei lá quem ou o quê, na sua mais profunda perversidade, resolve me maltratar metendo o dedo na minha ferida. Ao ligar a TV aquele almofadinha engravatado estava lá de volta. A cara asséptica, paletó e gravata e com a mais profunda frieza anunciava em seu programazinho a minha desgraça para milhões de telespectadores apáticos: – escritório de advocacia pega fogo no centro da cidade.
Não, ele não tinha tropeçado em sua língua. Ele cumpriu sua promessa. Esta era realmente uma má notícia!
3 comentários:
engraçado que eu tinha feito um comentário gigante e não sei como consegui apagar antes de postar aqui. fiquei com tanta raiva que nem sei se lembro do que escrevi. espera só eu me recuperar que eu escrevo um comentário decente... ;)
A realidade que circunda aparecendo trespassada por uma realidade que poderia ser a nossa e, em verdade, acaba que é... É quando a notícia acaba sendo, deveras, uma má notícia dentre tantas e todas as outras, "todas iguais". São tantas, e tanto e sempre, que acabam alimentando essa pouca memória da gente, realmente, não temos como gravar todos os acontecimentos, todas as notícias, boas ou más, são muitos os aspectos que constituem a nossa história enquanto transeuntes da vida, e a televisão nunca foi um veículo de credibilidade para construirmos arsenal histórico de nada também, tem isso.
Sentir-nos perpassados pela realidade alheia é o que acaba nos fazendo morrer um pouco mais, e morrer, tantas vezes, em tantas culturas, em tantas histórias, tantas leituras, pode nos fazer renascer, acordar.
Hehehehehe..... Isso também já aconteceu comigo Zabella. No mínimo, fiquei puto da vida. Mas agente espera...
Jack....,
Gostei do "transeuntes da vida". Acho que a expressão resume bem a nossa condição por aqui. E, como passageiros desse carro desgorvenado, seria interessante o mínimo de atenção com os media.
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